Resumo
Este artigo traz uma discussão
sobre a necessidade de se rever o conceito envolvendo a palavra
natural
nas discussões sobre a diversidade da expressão da sexualidade e da
identidade de gênero, tanto nos meios públicos, quanto acadêmicos.
Discute-se o uso da estratégia da desmontagem ou desconstrução e
análise de termos de enunciados de discursos discriminatórios,
buscando a ressignificação dos mesmos sob a luz de ciências atuais
diversas. São apresentados algumas contribuições das ciências
contemporâneas para a melhor compreensão do que seja natural quanto
ao comportamento sexual humano e construção de identidade de
gênero. Conclui-se que é natural a diversidade da expressão da
sexualidade e que existe a necessidade de uma revisão de conceitos
usados em muitos discursos de maneira a tornar possível suas
ressignificações para um combate eficaz a discriminações de
natureza sexual e de gênero.
O
QUE É NATURAL: UM CONCEITO QUE INFLUENCIA PROFUNDAMENTE OS DEBATES
SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO E DIVERSIDADE DA EXPRESSÃO DA
SEXUALIDADE
Introdução
O
conceito do que é natural está no centro da maioria das discussões
sobre o gênero e sexualidade humanos. Argumenta-se, do ponto de
vista conservador, nos debates públicos e até acadêmicos,
especialmente observados nos debates brasileiros, que as variantes de
gênero que vão além do identificável pelo sexo biológico, bem
como as formas diversas de expressão da sexualidade que não
correspondam a heterossexualidade
cis1,
estariam fora dos limites da natureza humana, portanto, configurando
uma construção social, considerada por alguns setores sociais até
mesmo como contrária a natureza.
Este
artigo busca fazer uma reflexão com alguns aspectos pertinentes a
este debate específico, trazendo elementos analisados pela ciência
contemporânea, no intuito de se fazer uma crítica a este discurso.
Nos
debates públicos a respeito das origens das chamadas diferenças
sexuais e da natureza das relações entre mulheres e homens –
debates esses conduzidos na mídia, nas interações cotidianas e nos
discursos acadêmicos – são feitas uma série de afirmativas que
empregam palavra “natural” de maneiras fundamentalmente
enganadoras. Estas afirmativas são de vários tipos, mas traço
em comum de muitas delas é que descrevem as diferenças
estabelecidas entre mulheres e homens na vida social como se fossem
originárias da biologia. (MOORE, 1997, p. 1).
Em
muitos discursos discriminatórios da identidade de gênero e da
diversidade da expressão da sexualidade, especialmente representada
pela homossexualidade, a palavra natural,
opera como um preconceito,
pois o que se considera como natural
é um conceito simplesmente pré-definido, em muitos debates, pela
tradição de nossa cultural ocidental. “As
palavras têm sempre uma história. E fazem a história também.
Pensar o “peso das palabras” é indagar sobre sua relação com a
história, tanto com aquela que as fez quanto com aquela para a qual
contribuem”(CUCHE,
2002, p. 17).
Por
isto, o significado que se tem em consideração pela palavra
natural,
nestas discussões, precisa ser mais profundamente compreendido, à
luz do conhecimento científico atualizado e, se necessário,
revisto.
A
influência Religiosa
O
questionamento sobre o que é natural na diversidade da expressão da
sexualidade e do gênero ocupa o centro do debate de algumas
importantes questões religiosas que envolvem a sexualidade, onde se
atribui ao que foge da norma a qualidade de anti-natural,
significando pecado
ou erro,
do ponto de vista da cultura religiosa de base judaica. No caso
ocidental, a cultura cristã incorpora de sua origem judaica os
conceitos sobre sexualidade que normatizaram a cultura e que a
influenciam até os dias de hoje. Esta normatização influi
diretamente na luta sobre os direitos de diversidade sexual, de
identidade de gênero e de reconhecimento dos indivíduos como
cidadãos plenos em nossa sociedade.
O conceito sobre o natural, é
apresentado nas sagradas escrituras judaico-cristãs, uma das bases
da cultura ocidental, como um parâmetro a ser usado para entender a
expressão do gênero e a sexualidade, e foi cunhado sob o ponto de
vista da antiga sociedade judaica, mais especificamente sob a
influência da lei mosaica. Este padrão de normatização, que
reconhece como legítimas apenas as relações sexuais heterossexuais
e apenas dois gêneros definidos, associados diretamente ao sexo
biológico, sem variações, foi herdado pelo cristianismo e adentrou
às sociedades ocidentais que tiveram sua cultura modelada pelo
mesmo, mas que tinham anteriormente até mesmo padrões de
normatização diferentes, como no exemplo da sociedade grega, na
qual a homossexualidade era tida como coisa natural e normal. A
expansão do cristianismo no ocidente naturalizou o heterossexualismo
como norma.
Torna-se
importante destacar ainda que, na história de nossas sociedades,
entre outras de suas expressões, o preconceito tomou a forma da
opinião religiosa, que, misturando às crenças uma visão também
naturalista da sexualidade, traduz-se na versão segundo a qual a
heterossexualidade sendo a forma sexual herdada da natureza pelo
homem e – sendo a natureza uma criação de Deus... Javé, Allah,
os termos variam conforme as crenças... – tudo que a essa forma
contraria, não apenas contraria a natureza, contraria igualmente a
vontade divina. Explica-se por que a homossexualidade é banida nas
religiões para o campo dos “pecados”, “atos impuros”,
“anomalias”, “vícios”, “depravações” ou, na erudição
de seus chefes, representa “quando menos, desordem da identidade de
gênero” – os termos são de Joseph Ratzinger, logo após
tornar-se Bento XVI. (SOUZA
FILHO, 2009, p, 9-10).
O cuidado da religião frente ao pecado levou ao desenvolvimento de
todo um discurso de condenação e vigilância sobre práticas
homossexuais, que permearam as culturas ocidentais e até orientais,
como no caso do mundo muçulmano, que também tem uma cultura que
sofre forte influência dos conceitos mosaicos.
Esta formação cultural refletiu-se até mesmo na ciência, que
ainda incipiente no século XIX, buscou, em muitos casos, justificar
preconceitos.
De
fato, era uma ciência feita de esquivas, já que, na incapacidade ou
recusa em falar
do próprio sexo, referia-se sobretudo às suas aberrações,
perversões, extravagâncias excepcionais, anulações patológicas,
exasperações mórbidas. Era, também, uma ciência essencialmente
subordinada aos imperativos de uma moral, cujas classificações
reiterou sob a forma de normas médicas. A pretexto de dizer a
verdade, em todo lado provocava medos; atribuía às menores
oscilações da sexualidade uma dinastia imaginária de males fadados
a repercutirem nas gerações; afirmou perigosos à sociedade inteira
os hábitos furtivos dos tímidos e as pequenas e mais solitárias
manias; no final dos prazeres insólitos colocou nada menos do que a
morte: a dos indivíduos, a das gerações, a da espécie. (FOUCAULT,
p. 53, 1988).
Hoje, a ciência ainda carrega muitos discursos resultantes desta
tendenciosidade, e que começaram a ser revisados durante o século
XX em um processo que prossegue até os dias de hoje, no século XXI.
Em muitas áreas do conhecimento, o efeito dos preconceitos
cristalizados no século XIX permanece.
[…]
Em geral, curiosas doutrinas (médicas, psicológicas, religiosas)
sobre a sexualidade humana são invocadas para “explicar” a
homossexualidade em homens e mulheres. Porém, não se tratando mais
do que de preconceito em forma de teoria e ciência, as conclusões
dessas doutrinas são não apenas arbitrárias: os “dados” sobre
os quais se apóiam são questionáveis ou inexistentes. (SOUZA
FILHO, 2009, p, 98).
A
psicologia por muito tempo também carregou preconceitos quanto a
homossexualidade:
No
caso das psicologias, teóricos que, confundindo casos clínicos
individuais com supostas leis gerais de “estrutura”, mas
arvorando-se à condição de poder teorizar sobre a
homossexualidade, praticam generalizações errôneas e profundamente
preconceituosas. É recente a crítica teórica e o combate político
ao preconceito em torno da homossexualidade. É a partir dos anos 50,
e sobretudo depois dos anos 70 do século XX, que se inicia a
formulação crítica, apoiada na antropologia e na história,
opondo-se ao discurso até então dominante – mesmo no chamado meio
científico – que apontava o caráter patológico, marginal e
desviante da homossexualidade. (SOUZA FILHO, 2009, p, 98-99).
A visão da normalidade da sexualidade heterossexual, reforçada
pela ciência do século XIX, naturalizou as visões errôneas sobre
este tema, tornando-se de senso comum, amplamente aceita na cultura
ocidental.
É
importante ressaltar que, no longo processo de colonização de
imaginário de nossas sociedades, ganhou força uma concepção que
corresponderia a uma naturalização
da
sexualidade humana, cujo efeito mais destacado é ter criado a idéia
segundo a qual a heterossexualidade seria inata (a natureza daria os
exemplos em todas as espécies), sendo então natural e normal. Indo
da opinião popular a pretensas visões científicas, essa idéia da
heterossexualidade como inata, constituída na natureza das espécies
e, assim, igualmente na natureza animal da espécie humana, tornaria
sem razão de ser qualquer questão sobre a sua origem.
(SOUZA FILHO, 2009, p, 99).
A
Análise Revisionista
Para
começar uma análise revisionista do que se considera como natural,
deve-se ter em consideração que um enunciado qualquer, seja
científico, seja educacional ou mesmo religioso, deve sempre ser
compreendido levando-se em consideração a época histórica na qual
o mesmo surge, pois o mesmo sempre estará relacionado aos
conhecimentos existentes e aos usos das palavras na época em
questão. Assim, deve-se ter em mente, ao se analisar um discurso
qualquer, que o conhecimento disponível em cada época e cultura
permitiu certas visões e conclusões para seus autores, que
certamente seriam diferentes se estivessem disponíveis a eles os
conhecimentos que estão hoje, século XXI. A função de um ato de
linguagem é “[...] uma
função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis
e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no
espaço.” (FOUCAULT, 1986, p. 99).
Esta
análise, em muitos casos, permite a ressignificação de alguns
termos, com a consequente mudança no sentido de todo o enunciado em
questão, pois a prática discursiva esta relacionada diretamente a:
[…]
um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
tempo e no
espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada
área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições
de exercício da função enunciativa. (FOUCAULT, 1986, p.136).
Além
disto, existe um padrão binário de raciocínio, comum nas culturas
ocidentais, onde as categorias analíticas são sempre confrontadas
numa divisão que tenta enquadrar as análises como dependentes da
existência de dois lados, como nos exemplos de a
presença e a ausência, ocerto
e o errado, o normal e o anormal, o homem e a mulher, nós e eles.
Sob
a influência deste pensamento binário, tradicional na cultura
ocidental, que trata as expressões de gênero correspondentes ao
sexo biológico de uma pessoa e as relações sexuais entre homem e
mulher como as únicas consideradas “naturais”,
contrapondo-as com as relações homossexuais,
esta
lógica simplista e incompleta, influenciada pela leitura literal e
parcial de fontes religiosas descontextualizadas, gerou todo um
discurso que leva a crer que as categorias que diferem do padrão
heteronormativo não deveriam existir, por contrariar
a natureza humana. A homossexualidade passou assim a ser considerada,
sobretudo a partir do reforço discursivo da ciência do século XIX,
como anormal,
qualificada como doença ou anomalia, e os indivíduos homossexuais
passaram a ser vistos como formadores de uma categoria de pessoas à
parte do centro
da sociedade. Nesta lógica de divisão binária estabelece-se uma
hierarquia, onde um dos lados sempre é tido como superior. O
indivíduo heterossexual é assim considerado como detentor de uma
sexualidade completa e o homossexual é visto como portador de uma
ausência
de completude, portanto representado como um ser inferior.
A
heterossexualidade como forma única de expressão de sexualidade
considerada como natural e portanto legítima passou a ser natural
para a maioria das pessoas, ou seja, ocorreu uma construção
sócio-cultural de uma naturalidade acreditada, mas que não mais se
compatibiliza com a realidade discernida pelas ciências atuais, que
indicam fortemente a invalidade destes discursos. Por isso, é uma
necessidade desnaturalizar
esta construção sócio-histórica-cultural que promove um
entendimento falso sobre a natureza da sexualidade humana.
O
filósofo francês Jacques Derrida propôs a respeito da
naturalização de normas que geram discriminações, via diversos
discursos, desnaturalizar
aquilo que não é natural,
em um processo de desconstrução
dos
discursos (DERRIDA, 1973).
A
desconstrução é uma estratégia que se vale da desmontagem dos
enunciados de um discurso em seus termos, que leva ao questionamento
sobre seus significados, considerando a estrutura da linguagem, que
por sua vez é dependente da época e do espaço onde surge um
enunciado. No caso do entendimento da diversidade da expressão da
sexualidade e do gênero, significa trazer à luz, via esta análise,
o fato de que a norma heterossexualista é uma construção social e
histórica e o indivíduo central na sociedade é apenas uma
construção, apesar destas coisas serem vistas como simplesmente
naturais por nossa cultura, devido aos discursos transmitidos de
geração em geração. Assim, em se falando de interpretações da
sociedade e da natureza que conduzem à discriminações, torna-se
necessária uma análise dos conceitos que sustentam os discursos
discriminatórios para ressignificá-los sobre um novo alicerce de
conceitos atualizados, permitindo a compreensão da realidade pelas
pessoas e o abandono destas discriminações.
Neste
processo de desconstrução de um enunciado, constatações das mais
diferentes áreas científicas podem ser usadas, pois dados
atualizados permitem perceber que o significado de termos como
natural
são mais precisamente definidos com o avanço dos estudos
científicos, ou sejam, mudam
em função do tempo.
Contribuições Científicas
Ao
contrário do pensamento que confere à diversidade da expressão da
sexualidade e a diversidade da expressão da identidade de gênero a
classificação como ocorrências contrárias à natureza, que seria
exclusivamente heterossexual, estudos científicos atuais, em
diversas áreas do conhecimento, apontam para a naturalidade destas
ocorrências na espécie humana. Nas
ciências sociais, por exemplo, temos vários resultados de
estudos em diferentes sociedades humanas que revelam sobre a
sexualidade que: “Há ampla evidência etnográfica para demonstrar
que esse tipo de categorização binária é culturalmente específica
e não brota automaticamente do reconhecimento das diferenças nos
papéis e nas aparências físicas.” (MOORE, 1997, p. 7).
Está claramente demostrado por
estudos etnográficos que o que consideramos como natural ou
anti-natural, nas expressões de gênero e da sexualidade, são
apenas funções de questões culturais, ou seja, são um construto
social, que muda de sociedade em sociedade. Os resultados de
pesquisas indicam que não existe um padrão referencial universal,
para gênero e para sexualidade a ser considerado como único a ser
reconhecido ou legitimado.
Surgiu assim, para explicar o
papel social dos indivíduos em relação ao seu sexo, o conceito de
gênero:
O
conceito de gênero foi criado para enfatizar o fato de que as
identidades masculina e feminina são historicamente e socialmente
produzidas. É suficiente observar como sua definição varia ao
longo da história e entre as diferentes sociedades para compreender
que elas não tem nada de fixo de essencial ou de natural. (SILVA,
2002, p. 105-106).
Para
entender o conceito de gênero e sua diferença em relação ao
conceito de sexo biológico, é necessário entender que os papéis
atribuídos ao gênero mudam de sociedade para sociedade, indicando
que são artificialmente, culturalmente construídos.
Nada
é puramente natural no homem. Mesmo as funções humanas que
correspondem a necessidades fisiológicas, como a fome, o sono, o
desejo sexual, etc., são informados pela cultura: as sociedades não
dão exatamente as mesmas respostas a estas necessidades. Afortiori,
nos
domínios onde não há constrangimento biológico, os comportamentos
são orientados pela cultura. Por isso, a ordem; “Seja natural”,
frequentemente feita às crianças, em particular nos meios
burgueses, significa, na realidade: “Aja de acordo com o modelo da
cultura que lhe foi transmitido”. (CUCHE, 2002, p. 11).
Assim,
o comportamento que é considerado como natural em uma dada cultura
é, na verdade, o que esta cultura delimita como comportamento
natural.
Se todas as populações
humanas possuem a mesma carga genética, elas se diferenciam
por suas escolhas culturais. A noção de cultura é o instrumento
adequado para acabar com as explicações naturalizantes dos
comportamentos humanos. A própria natureza é interpretada pela
cultura (CUCHE,
2002, p. 9).
A
cultura interpreta a natureza humana e tende a considerar como
natural o que é comumente aprendido por todos nesta mesma
interpretação. A norma é assim naturalizada e tida como padrão
natural de comportamento pelo senso comum das pessoas.
A
natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela cultura. As
diferenças que poderiam parecer mais ligadas à propriedades
biológicas, particulares como, por exemplo, a diferença de sexo,
não podem ser jamais observadas “em estado bruto” (natural)
pois, por assim dizer, a cultura se apropria delas “imediatamente”:
a divisão sexual dos papéis e das tarefas nas sociedades resulta
fundamentalmente da cultura e por isso varia de uma sociedade para
outra. (CUCHE, 2002, p. 11).
Não é somente a ciência
social, demonstrando o controle que a construção social de costumes
exerce sobre a identidade de gênero e a expressão da sexualidade,
que se dá diferentemente em cada sociedade, que permite basear
fortes questionamentos sobre a naturalidade da heteronormatividade.
Também na psicanálise encontramos indicativos da naturalidade de
práticas sexuais diversas e de papéis diversos dos gêneros. Freud,
já em 1905, traz a assertiva:
[...]
a Psicanálise considera que a escolha de um objeto,
independentemente de seu sexo -que recai igualmente em objetos
femininos e masculinos- tal como ocorre na infância, nos estágios
primitivos da sociedade e nos primeiros períodos da história, é a
base original da qual, como
consequência da restrição
num ou noutro sentido, se desenvolvem tanto os tipos normais como os
invertidos. Assim, do ponto de vista da Psicanálise, o interesse
sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema
que precisa ser elucidado
[...]. (Freud, 1905, p. 146, nota acrescentada em 1915).
Freud expressa, já em sua
época, a percepção de que as atividades sexuais humanas são
reguladas pela restrição,
ou seja, reguladas pela cultura, que as molda e acrescenta:
A
pesquisa psicanalítica se opõe com o máximo de decisão que se
destaquem os homossexuais, colocando-os em um grupo a parte do resto
da humanidade, como possuidores de caraterísticas especiais.
Estudando as excitações sexuais, além das que se manifestam
abertamente, descobriu que todos os seres humanos são capazes de
fazer uma escolha de objeto homossexual e que na realidade o fizeram
no seu inconsciente. (Freud, 1905, p. 146, adição de 1915).
Freud toma a sexualidade
homossexual como natural quando declara que os homossexuais não
devem ser considerados em uma categoria à parte, como “como
possuidores de caraterísticas especiais”. Isto também conduz a
perceber que a categoria “homossexual” também é uma categoria
culturalmente construída, na tentativa de classificar as pessoas em
função de suas práticas, como se tais práticas configurassem algo
fora da naturalidade e, portanto, fora de uma normalidade. Desta
forma a palavra homossexual
tampouco
pode configurar-se como a identidade de um indivíduo.
As
ciências biológicas, por sua vez, também contribuem com evidências
irrefutáveis da naturalidade da diversidade de práticas sexuais em
populações animais e, por consequência, no ser humano, que se
enquadra na categoria dos primatas.
O biólogo Canadense Bruce Bagemihl, discute em sua obra clássica
“Biological
Exuberance: Animal Homosexuality and Natural Diversity”
(BAGEMIHL, 1999), resultados de
mais de duas centenas de pesquisas científicas e cita a ocorrência
de relações homossexuais em mais de 300 espécies de mamíferos e
aves, demonstrando que na natureza é claramente comum a
ocorrência de sexo homossexual. Neste âmbito, as categorias dos
primatas, a qual também pertence também a espécie humana, é a que
traz exemplos mais próximos das práticas homossexuais observadas em
seres humanos.
[...]
entre primatas, comportamentos homossexuais são particularmente
diversos, incluindo práticas como
a de um macho ser montado por outro (em Macaca nemestrina, babuínos,
orangotangos, chinpanzés e bonobos), monta com penetração anal (em
Macaca arctoides, Saimiri sciureus) e monta com penetração anal
levando à ejaculação (macacos japoneses, macacos rhesus, gorilas).
Masturbação de outros machos também são relatadas, incluindo
masturbação mútua (nos Macaca arctoides), podendo chegar à
ejaculação (gibões). Foram relatados, ainda, contato
genital-genital (nos bonobos) e felação (em Macaca arctoides).
Outros comportamentos, talvez relacionados, incluem:
cheirar/inspecionar as regiões anal/genital de outros machos (Macaca
arctoides), exibir o pênis ereto para outros machos (Cercopithecus
aethiops) e a preferência de machos por copular com parceiros do
mesmo sexo e não do sexo oposto (rhesus).
(FORASTIERI, 2006, p. 51-52 apud WERNER, 1998).
Ainda na categoria dos primatas, entre os macacos bonobos
observa-se, entre fêmeas, práticas homossexuais claramente voltadas
à busca de prazer:
Os
Bonobos têm uma sociedade matriarcal, incomum entre os símios, é
uma espécie completamente bissexual. Tanto os machos como as fêmeas
realizam atos tanto heterossexuais como homossexuais. Aproximadamente
60% da atividade sexual da espécie são entre duas ou mais fêmeas.
Esses primatas fazem sexo para resolver conflitos, pedido de
desculpas, ou para obtenção de prazer. Passam boa parte do dia se
estimulando, e sexo oral é extremamente comum. As fêmeas possuem
clitóris bem maior do que a das humanas, atingem o orgasmo com
extrema facilidade. (FURLANETTO; GROTH; JANZEN; CRETE, p. 3, 2013).
A
farta documentação existente em pesquisas científicas de várias
áreas da ciência deixam clara a normalidade do fenômeno das
relações homossexuais na natureza e indicam também que o sexo não
tem somente a função de procriação, fato que fica determinado na
observação de primatas.
A
ocorrência de sexo homossexual na natureza demonstra que a
diversidade sexual é natural. Esta diversidade, que a psicologia
descreve no ser humano, em seus mecanismos, uma vez interpretada pela
cultura, dará origem as variações de identidade de gênero, que
são construções sociais para a representação dos papéis sexuais
naturais variados.
O
trabalho de revisão de conceitos para a demonstração da
naturalidade e normalidade da diversidade sexual é
um trabalho de esclarecimento, que deve ser feito à luz de estudos
científicos contemporâneos, que permitirão desenvolver no público
uma outra visão sobre a sexualidade e o gênero adequados à
realidade, pois:
Independentemente
de tratar-se de uma escolha de vida sexual ou de uma questão de
característica estrutural do desejo erótico por pessoas do mesmo
sexo, a homossexualidade deve ser considerada, de agora em diante,
como uma forma de sexualidade tão legítima quanto a
heterossexualidade. Na realidade, ela é apenas a simples
manifestação do pluralismo sexual, uma variante constante e regular
da sexualidade humana. (BORRILLO, 2000, p. 14).
Considerações
Finais
Áreas
distintas das ciências trazem evidências que apontam para a
conclusão de que a homossexualidade em seres humanos nada mais é do
que uma ocorrência natural e regular.
Pela
vertente das ciências humanas, a história e a etnografia demonstram
que práticas homossexuais ocorrem em sociedades distintas, sendo
aceitas ou reprimidas conforme cada cultura e cada época e que o
gênero tem papel variável, sendo, portanto, socialmente construído.
Resultados de pesquisas indicam que é a cultura que molda os
comportamentos sexuais e os papéis a serem assumidos pelos
indivíduos com relação ao seu sexo biológico ou praticado.
Na
psicanálise, a evolução dos estudos no século XX também permitiu
abandonar a ideia da existência de um desvio da normalidade sexual
para a adoção da ideia da homossexualidade como uma manifestação
normal da sexualidade humana, com o consequente abandono da
proposição de terapias para o tratamento da homossexualidade.
As
ciências biológicas, por sua vez, deixam clara a regularidade da
homossexualidade na natureza e demonstra que o ser humano, como
mamífero e primata, se insere neste quadro, ajustando-se
perfeitamente, não fugindo a regra natural da manifestação plural
da sexualidade.
Para
as discussões públicas sobre o tema da diversidade da expressão da
sexualidade e da identidade de gênero fica, então, indicada a
necessidade de se revisar e esclarecer o conceito do que é realmente
natural, sob a luz de diferentes ciências contemporâneas,
desmistificando pensamentos que induzem a sérios equívocos e a
sérias discriminações de pessoas em nossa sociedade, geradores de
conflitos.
A
desconstrução e análise crítica das concepções equivocadas
acerca da natureza da sexualidade humana é necessária, porque estas
permeiam toda a cultura, interferindo em decisões importantes, que
baseadas em conceitos já ultrapassados pelo conhecimento atualizado,
podem levar a consequências danosas não somente para indivíduos
homossexuais e transgêneros, que deixam de ser reconhecidos como
cidadãos plenos, mas para toda a sociedade, em função dos
conflitos que o tratamento inadequado do tema permite perpetuar.
Por
fim, em função de tudo o que a atual ciência expõe, fica evidente
a artificialidade da normatização
quando esta se configura como um limitador da expressão da natureza
da sexualidade humana, impondo regras que eliminam práticas. Do
contrário, na mesma medida em que ocorre o afrouxamento das regras
normatizadoras, ou é dada a oportunidade de quebrá-las, a
diversidade reprimida vem à tona, evidenciando a natural diversidade
de comportamentos de gênero e de sexualidade humanos.
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e diversidade sexual: problematizações sobre a homofobia nas
escolas.
Brasília: (Coleção Educação para Todos) - Ministério da
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1Cis
é um prefixo latino que significa “deste lado”. Cis é usado
para designar uma pessoa que se sente pertencente ao gênero
correspondente ao seu sexo biológico de nascimento e, ao mesmo
tempo, tem práticas sexuais heterossexuais correspondentes ao seu
sexo biológico.
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