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Sexualidade e Identidade de Gênero no Currículo Escolar - uma necessidade

Conheça neste artigo um pouco do porque é necessário o ensino sobre sexualidade e identidade de gênero nas escolas fundamentais e o que diz a teoria educacional sobre o tema. O texto abaixo é a reprodução literal de trecho de dissertação de mestrado produzida na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul por Prof. Me. Carolli (2017). O texto foi elaborado para ser didático e é destinado à formação do público em geral, especialmente à formação docente.

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A diversidade da sexualidade e da identidade de gênero na escola


Tratar o tema da diversidade de expressão da sexualidade e da identidade de gênero na escola é refletir sobre direitos humanos, e o reconhecimento igualitário dos indivíduos é um dos valores da democracia. Progressivamente, durante o século XX e início do século XXI, a promoção dos direitos humanos foi estendendo o reconhecimento às classes antes marginalizadas na sociedade para se chegar ao que hoje está sendo chamado de “terceira geração” de direitos humanos:

[...] Tais direitos foram contemplando progressivamente o indivíduo, as classes sociais, as mulheres, as minorias e o meio ambiente. Estes três últimos são os chamados direitos de “terceira geração”. As minorias em questão incluem os homossexuais. A autonomia secular foi ocasião para muitos Estados reconhecerem uniões entre pessoas do mesmo sexo e o direito de homossexuais adotarem filhos, contrariando grupos religiosos. A racionalidade científica penetra na teologia e nos estudos bíblicos. No mundo católico, o método histórico-crítico já derrubou o sentido literal do relato da criação do mundo e do ser humano. A heterossexualidade universal está em cheque ao se admitir que haja pessoas com inclinação homossexual profundamente enraizada e irreversível. (LIMA, 2006, p. 10-11).

Como descrito no Capítulo I, o empoderamento dos indivíduos pelo acesso amplo à informação, especialmente a partir da segunda metade do século XX, fomentou a consciência quanto a direitos legais, e minorias antes silenciadas passaram a se articular questionando a sociedade a partir da margem em que estavam; começaram a questionar processos de dominação e de inferiorização articulados aos Saberes instituídos, especialmente os de base logocêntrica. Contudo, muitas ideias oriundas do Logocentrismo ainda permeiam a sociedade e são reproduzidas pela convivência social.

A escola não se isenta desse fenômeno de reprodução cultural. Processos de dominação e de inferiorização de indivíduos tendem a ser reproduzidos pelo Currículo e perpetuados a partir do compartilhamento de ideias comuns e de atitudes que existem no ambiente escolar:

[...] Através de múltiplas estratégias de disciplinamento, aprendemos a vergonha e a culpa; experimentamos a censura e o controle. Acreditando que as questões da sexualidade são assuntos privados, deixamos de perceber sua dimensão social e política. As coisas se complicam ainda mais para aqueles e aquelas que se percebem com interesses ou desejos distintos da norma heterossexual. A esses restam poucas alternativas: o silêncio, a dissimulação ou a segregação. [...]. (LOURO, 2000, p. 18).

Essa ação do Currículo ajuda a produzir as diferenças quanto à diversidade de expressão da sexualidade e da identidade de gênero pela reiteração da afirmação de existência de pares de categorias apresentadas como opostas.

A linguagem é fundamental nesse sentido. Como descreveu Derrida (1973), a linguagem não consiste somente na fala ou na escrita, mas também na imagem, nos gestos e em qualquer forma de comunicação. É o conjunto de formas de comunicação que inclui os comportamentos sociais que dão margem à existência do Currículo Oculto. Este atua incessantemente, moldando os indivíduos de acordo com a cultura estabelecida e, caso não receba a devida atenção, eterniza injustiças da construção social por meio da linguagem. Um dos processos que se pela atuação do Currículo Oculto é a produção da heterossexualidade, acompanhada da rejeição da homossexualidade. Essa repulsa pode ser expressa por uma declarada discriminação contra a diversidade de expressão da sexualidade e da identidade de gênero, especialmente por parte de homens. A manifestação de afetividade entre eles, dentre aquelas entre indivíduos do mesmo sexo é, por exemplo, a mais vigiada pela sociedade. Expressões físicas de amizade são controladas, quase impedidas, às vezes acompanhadas por brincadeiras e piadas depreciativas quanto à homossexualidade.

Assim age o Currículo Oculto e a não compreensão desses processos por parte do corpo docente, o que leva à inércia da escola diante dessas situações e permite o aprendizado social que mantém vivo esse tipo de discriminação.

As representações sociais por comportamentos de indivíduos que circulam socialmente produzem aprendizados sociais. Alguns, por sua constante reiteração, são naturalizados e tomados simplesmente por realidade; assim, grupos considerados “normais” falam por si mesmos e pelos outros, apresentando como padrão sua própria estética, subordinando os demais. Esses comportamentos são absorvidos pela totalidade de alunas e alunos, de maneira que se naturaliza a elevação de certos sujeitos a posições sociais centrais enquanto se empurram outros para situações marginais, como os indivíduos LGBT.

[...] Por tudo isso, podemos afirmar que as identidades sociais e culturais são políticas. As formas como elas se representam ou são representadas, os significados que atribuem às suas experiências e práticas é, sempre, atravessado e marcado por relações de poder. [...]. (LOURO, 2000, p. 09-10).

Enfrentar esses processos de reprodução cultural na escola implica uma decisão política de fazer uma educação de qualidade, o que também significa fazer uma educação justa, que promova, por conseguinte, a justiça social.

Situações de discriminações, ainda que representadas por “inocentes” brincadeiras, transmitem a ideia de naturalização de uma determinada norma e de inferiorização dos indivíduos considerados “fora do centro”. “Meninos e meninas aprendem, também desde muito cedo, piadas e gozações, apelidos e gestos para dirigirem àqueles e àquelas que não se ajustam aos padrões de gênero e de sexualidade admitidos na cultura em que vivem.” (LOURO, 2000, p. 19).

A não intervenção por parte de educadoras e educadores, nesse caso, equivale a consentir em discriminações e manter a cultura discriminatória.

Sendo a educação um processo político que merece consciência e atenção aos seus processos constituintes e seus atores não somente o corpo docente, mas também a administração do sistema educacional e até alunas e alunos, que participam ativamente do Currículo Oculto, alerta-se para que sejam questionadas até mesmo as omissões dentro do ambiente escolar, tendo em vista o cuidado de se saber se estas são ou não intencionais, pois, com relação a exclusões, tem-se que:

Consentida e ensinada na escola, a homofobia expressa-se pelo desprezo, pelo afastamento, pela imposição do ridículo. Como se a homossexualidade fosse "contagiosa", cria-se uma grande resistência em demonstrar simpatia para com sujeitos homossexuais: a aproximação pode ser interpretada como uma adesão a tal prática ou identidade. [...].” (LOURO, 2000, p. 19).

Professoras e professores não devidamente esclarecidos pelo conhecimento de teorias educacionais pertinentes ao Currículo podem consentir involuntariamente em perpetuar esse tipo de injustiça social, não intervindo no momento em que as discriminações se manifestam. Por exemplo, um indivíduo homossexual pode ser silenciado por práticas escolares de professoras e professores, de alunas e de alunos, prejudicando seu desenvolvimento pessoal. Assim, a escola, que deveria ser lugar de esclarecimento, acaba por atuar como outras instituições sociais e reproduzir uma cultura discriminatória. A opção docente por fazer uma educação inclusiva e democrática, transformadora da cultura, implica refletir sobre o que se ensina e o que se reproduz:

Como se pode notar, assumir a diversidade no currículo implica compreender nosso caminhar no processo de formação humana que se realiza em um contexto histórico, social e político. Neste percurso construímos as nossas identidades, representações e valores sobre nós mesmos e sobre os “outros”. Construímos relações que podem ou não se pautar no respeito as diferenças. Estas extrapolam o nível interpessoal e intersubjetivo, pois são construídas nas relações sociais. Será que nos relacionamos com os “outros” presentes na escola, considerando-os como sujeitos sociais e de direitos? (GOMES, 2007, p. 32).

A educação precisa também desenvolver o olhar crítico sobre práticas institucionalizadas que elegem identidades sexuais e de gênero como normas. A educação sobre sexualidade e gênero acontece a todo o momento na escola, de maneira acrítica e até imperceptível, legitimando determinadas práticas e identidades sexuais e reprimindo e marginalizando outras. De maneira similar, outras instituições também praticam uma pedagogia da sexualidade e do gênero, como a mídia, a igreja, a justiça, etc., mas é na escola que se tem a oportunidade e a responsabilidade de se operar a pedagogia de uma maneira crítica, que produza a justiça social.

Intervir a favor da promoção da igualdade de direitos é uma atitude a favor da cidadania para todos e, em alguns momentos, contra a manutenção de privilégios de grupos específicos que podem ser questionados pela escola, ainda que isso possa incomodar algumas estruturas instaladas e naturalizadas na sociedade:

[...] O que efetivamente incomoda é a manifestação aberta e pública de sujeitos e práticas não-heterossexuais. Revistas, moda, bares, filmes, música, literatura, enfim todas as formas de expressão social que tornam visíveis as sexualidades não-legitimadas são alvo de críticas, mais ou menos intensas, ou são motivo de escândalo. Na política de identidade que atualmente vivemos serão, pois, precisamente essas formas e espaços de expressão que passarão a ser utilizados como sinalizadores evidentes e públicos dos grupos sexuais subordinados. Aí se trava uma luta para expressar uma estética, uma ética, um modo de vida que não se quer "alternativo" (no sentido de ser "o outro"), mas que pretende, simplesmente, existir pública e abertamente, como os demais. (LOURO, 2000, p. 20).

Por isso, a luta contra os preconceitos de qualquer natureza configura-se como um posicionamento político que visa ao direito para todos. Trata-se de uma atitude política de base ideológica abertamente assumida, que carrega uma intenção solidária, democrática e republicana que, inclusive, no caso brasileiro, é constitucional. Nesse sentido, a argumentação de Paulo Freire é pertinente e atual:

Creio que nunca precisou o professor progressista estar tão advertido quanto hoje em face da esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação. Desse ponto de vista, que é reacionário, o espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que se treinam os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra. Minha presença de professor, que não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola, é uma presença em si política. [...]. (FREIRE, 1996, p. 38).

O enfrentamento pela escola deste e de outros temas importantes abre caminho para a correção de injustiças sociais que precisam ser questionadas, assumindo-se que essa é função da educação escolar, que, utilizando conhecimentos científicos, tem condições de promover um adequado esclarecimento sobre o tema que a mídia, a convivência social e outras instituições não podem fazer adequadamente:

Diversidade sexual e de gênero também tem sido um tema constante na mídia, através das novelas, do cinema, da publicidade, dos programas de auditório para jovens, das revistas voltadas para o público adolescente etc., o que certamente tem forçado a escola a debater o tema, trazido às vezes espontaneamente pelos/as próprios/as alunos/as. [...]. (DINIS, 2008, p. 478).

Para o corpo docente, é necessário o conhecimento científico multidisciplinar e interdisciplinar sobre preconceitos e discriminações e de como tratá-los dentro da escola e da sala de aula, tendo em vista que muitas discriminações são resultado de construções culturais. A interação com os discentes sobre diversidade de expressão da sexualidade e da identidade de gênero deve ser segura, aberta, oportuna e, principalmente, franca. A professora e o professor devem estar prontos a não perderem janelas de oportunidade, já que a ação do Currículo Oculto não tem calendário nem hora para ocorrer.

[...] Elas devem estar preparadas para serem incertas em suas explorações e ter oportunidades para explorar a extensão e os surpreendentes sintomas de sua própria ansiedade. Mas juntamente com a análise de por que a sexualidade é tão difícil de ser discutida no conteúdo escolar, deve também haver uma disposição de parte das professoras para desenvolver sua própria coragem política, numa época em que pode não ser tão popular levantar questões sobre o cambiante conhecimento da sexualidade. Isso significa que a sexualidade tem muito a ver com a capacidade para a liberdade e com os direitos civis e que o direito a uma informação adequada é parte daquilo que vincula a sexualidade tanto com o domínio imaginário quanto com o domínio público. (BRITZMAN, 1999, p. 80).

Assim, assumir a educação como instrumento transformador da sociedade é se conscientizar e tomar para si uma função inerente à própria educação. A promoção de valores democráticos, de respeito e de reconhecimento ao próximo baseados em conhecimentos sólidos que devem ser levados a alunas e aos alunos é alicerce para se ter uma sociedade civilizada. A educação escolar pode se eximir desse percurso e o cumprir bem ou mal, ativamente, ou simplesmente assistindo à reprodução cultural. Sobre preconceitos relacionados à diversidade de expressão da sexualidade e da identidade de gênero, que são extremamente danosos para a vida de muitas pessoas, pode a escola atuar, considerando que:

Na realidade, a homofobia constitui uma ameaça aos valores democráticos de compreensão e respeito por outrem, no sentido em que ela promove a desigualdade entre os indivíduos em função de seus simples desejos, incentiva a rigidez dos gêneros e favorece a hostilidade contra o outro. Enquanto problema social, a homofobia deve ser considerada como um delito suscetível de sanção jurídica; todavia, a dimensão repressora é destituída de sentido se ela não for acompanhada por uma ação preventiva. [...]. (BORRILLO, 2010, p. 106).

A escola é, pois, a instância pela qual se pode levar adiante uma ação que pode ser mais do que simplesmente preventiva: pode ser transformadora.

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REFERÊNCIAS

BORRILLO, Daniel. Homofobia: História e Crítica de um Preconceito. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.

BRITZMAN, Deborah. Curiosidade, sexualidade e currículo.In: LOURO, G. L. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 61-82.

CAROLLI, André Luís. Desconstrução de discursos discriminatórios sobre a diversidade de expressão da sexualidade e da identidade de gênero expressos entre alunos e alunas do ensino médio. Dissertação de Mestrado em Educação, 199 p., sob orientação da Profa. Dra. Maria José de Jesus Alves Cordeiro - UEMS. Paranaíba, MS: UEMS, 2017.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.

DINIS, Nilson Fernandes; CAVALCANTI, Roberta Ferreira. Discursos sobre homossexualidade e gênero na formação em Pedagogia.Pro-posições, Campinas, v. 19, n. 2, p. 99-109, maio/ago 2008. Disponível em Acesso em 25 de junho de 2017.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 25 ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.

GOMES, Nilma Lino. Indagações sobre currículo: diversidade e currículo. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Básica, 2007.

LIMA, Luís Corrêa. Homossexualidade e Igreja Católica – conflito e direitos em longa duração. In: Em Debate 04 Revista do Departamento de Serviço Social PUC-Rio, 2006.

LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.


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