Neste artigo, Cidadania e Reflexão traz uma reflexão sobre o conceito cristão de "pecado", mostrando como este pode ser um conceito abrangente e que pode, inclusive, mudar, segundo as determinações do Discurso do Poder religioso vigente em cada época.
Baseado na Análise de Discurso e na Genealogia do Poder, segundo Foucault (1984; 1996; 1999; 2006; 2008) e ainda na Desconstrução, proposta por Jacques Derrida (1973; 2009; 2005), que prevê a desmontagem de textos para o exame detalhado de seus componentes e processos formadores, este artigo convida você a conhecer um pouco do percurso do conceito de pecado na história ocidental.
O texto apresentado a seguir é a reprodução literal de trecho de dissertação de mestrado produzida na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul por Carolli (2017) e mostra como pode mudar o discurso sobre o pecado em função de interpretações relativas a cada época e cada autor. A primeira parte expõe como o pecado é um conceito muito abrangente, que pode ser adaptado conforme muitas situações. Isto tem sérias implicações, por exemplo, quanto à discriminação de pessoas devido à sua expressão de sexualidade. A segunda parte do texto expõe mudanças históricas significativas quanto ao que se já considerou como pecado. O texto reproduzido foi elaborado para ser didático e é destinado à formação do público em geral, especialmente à formação docente e permite problematizar: o que é o pecado? Como definir o que seja pecado?
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O discurso do pecado sexual sob Desconstrução
Rememorando
Foucault sobre a Desconstrução do sexo como pecado, “[...]
Seria legítimo, certamente, perguntar por que, durante tanto tempo,
associou-se o sexo ao pecado – e, ainda, seria preciso ver de que
maneira se fez essa associação [...]”. (FOUCAULT, 1999, p. 14).
Foi
dado prosseguimento à investigação observando-se que o Poder
produz Saber (FOUCAULT, 2006, p. 30), ou seja, o Poder molda, reforça
e promove discursos. Sob essa ótica, foi interessante observar o uso
da palavra “pecado” como um conceito para englobar uma série de
proibições a serviço do Poder religioso vigente. Esse conceito foi
reformulado de acordo com a visão de cada época, como acontece no
exemplo descrito no próprio texto bíblico em Atos
dos Apóstolos, 15, 27-29. (BÍBLIA, 2002, p. 1930).
[...]. [...]. [...].
As várias citações existentes em diferentes contextos da palavra pecado na tradução da Bíblia para a língua portuguesa tornam difícil delimitar esse conceito com exatidão, em apenas uma definição. Será ora considerada uma definição clássica e universalmente difundida para o conceito segundo o Segundo Testamento, uma vez que os cristãos são dispensados dos rigores da Lei Mosaica e porque a presente investigação se dá em um universo social predominantemente cristão. Tomou-se como norte a definição clássica de pecado oferecida pelo apóstolo João em sua primeira carta apostólica, uma prescrição universal a todos os cristãos.
A carta Apostólica em seu capítulo terceiro, versículo quarto, em sua versão original no idioma grego, explica: “[...] πας ο ποιων την αμαρτιαν και την ανομιαν ποιει και η αμαρτια εστιν η ανομια [...]” (BÍBLIA, 2016, n.p.). Essa sequência tem a seguinte tradução, em Língua Portuguesa, segundo a Bíblia de Jerusalém: “[...] Qualquer que comete pecado, também comete iniquidade; porque o pecado é iniquidade. [...]” (BÍBLIA, 2002, p. 2128).
Nesse trecho destacam-se duas palavras-chave para o entendimento do conceito que o apóstolo João tentou transmitir: a palavra ανομια (anomia), que significa “ilegalidade”, e a palavra “αμαρτια” (amartia), que, de acordo com as traduções tradicionais, refere-se a “errar o alvo”, o que, contextualmente, simplesmente significa “erro”.
A análise das etimologias dessas palavras, contudo, mostra que no texto original os significados são diferentes em relação aos apresentados pelas traduções oficiais, porque foram contextualizados com o pensamento então vigente ao momento da tradução, como será mostrado. A palavra “αμαρτια”, por exemplo, possui a partícula “a”, que representa negação ou ausência, associada a “μαρτια” (martia), testemunha. Observando-se essa morfologia, pode-se concluir que seu significado mais próximo do literal, em Língua Portuguesa poderia ser a ausência do testemunho ou a negação do testemunho religioso cristão, ou seja, poderia significar que as pessoas pecadoras não agem como agiria Jesus.
A composição da palavra ανομια (anomia), por sua vez, traz também uma partícula negativa “a”, associada a “νόμος” (nómos), que significa lei; anomia teria, por isso, em ilegalidade, sua tradução mais próxima da literalidade.
As palavras anomia e amartia não teriam, pois, uma tradução literal exata em Língua Portuguesa e, por isso, precisam da adaptação exemplificada anteriormente e, por esse mesmo motivo, nota-se que existem diferentes traduções para esse versículo, que certamente sofrem influências do conhecimento e do discurso praticado por seus respectivos tradutores no momento da escolha das palavras para a adaptação da tradução. Esse é um exemplo do que acontece na tradução de todo o texto bíblico para diferentes idiomas.
O trecho destacado “αμαρτια εστιν η ανομια”, por sua vez, em uma tradução para a língua portuguesa mais próxima do sentido literal teria a forma: a negação do testemunho deles é ilegalidade.
A palavra grega amartia (negação do testemunho) comumente é considerada na tradução do grego para o latim como a síntese de várias violações da lei e de normas a serem evitadas pelos cristãos, leia-se erros. Esse amplo conceito foi reunido na tradução para o latim na palavra“peccatu” (erro), que mais tarde deu origem à palavra “pecado” em língua portuguesa.
Assim, no contexto grego, a palavra “αμαρτια” (amartia) poderia significar um mau testemunho para o cristão, a negação de um modo de comportamento ético esperado. A palavra pecattu, por outro lado, significando “erro” na tradução romana, poderia, a partir da implementação de sua utilização, referir-se à violação de qualquer lei ou norma estabelecida pelo Poder religioso vigente.
Um exemplo de significado para a palavra pecado, segundo a visão de um autor protestante, é:
Você concorda que existe injustiça, impiedade, incredulidade, transgressão, violência, rebelião, desobediência, corrupção, insensatez, infidelidade, falsidade, engano, malícia e impureza no mundo? Saiba que tudo isso e muitos outros males são sintetizados na palavra grega amartía, que é traduzida pela palavra pecado, no singular, que é vertida do termo latino peccatu. Esta palavra amartía era usada originalmente para designar a condição de errar ou não alcançar um alvo; de não participar de algo; de perder ou enganar-se. [...]. (DUTRA, 2012, n.p).
A tradução da palavra amartia como pecado é encontrada em traduções católicas e protestantes da Bíblia. Entretanto, o versículo completo, aproximando-se ao máximo do sentido literal, poderia ser traduzido da seguinte maneira: “Cada qual que não testemunha comete ilegalidade, porque a negação do testemunho deles é ilegalidade” (conclusão desta pesquisa). A partir dessa tradução, pode-se entender que a “lei” para os cristãos não seria mais a Lei Mosaica, mas seu simples “testemunho” no mundo.
Algumas traduções protestantes, como a de João Ferreira de Almeida, trazem expressões adaptadas a uma visão teológica mais conservadora: “Todo aquele que pratica o pecado também transgride a lei, porque o pecado é a transgressão da lei.” (BÍBLIA, 2006, p. 197). Como nesse último acaso, em muitas traduções resultantes para a língua portuguesa, católicas e protestantes, evitar o pecado, considerando-se somente a leitura isolada e descontextualizada desse versículo, remeteria à necessidade de cumprimento da Lei Mosaica com todas as suas muitas regulações, ou ainda o respeito a uma infinidade de normas estabelecidas posteriormente pelo Cristianismo ou por igrejas específicas.
Contudo, tomando-se a tradução mais próxima da literalidade, desenvolvida nesta análise, o sentido do pecado muda de transgressão da lei para testemunho, interpretação que seria mais compatível com a leitura contextual de toda a carta do apóstolo, que é um discurso de promoção do amor e da caridade e não de ordenanças de normas. Esse também é o pensamento que pode guiar a leitura de todo o Segundo Testamento, que prioriza o desenvolvimento da consciência dos cristãos em detrimento do simples seguimento da Lei Mosaica, inclusive dispensado nesse Testamento.
O importante nesta análise é notar que a escolha da palavra peccatu como tradução para o latim de amartia no século IV por Jerônimo1 abriu a possibilidade de se flexibilizar a interpretação do que orientava o apóstolo João sobre o que era permitido ou não aos cristãos. Isso, intencionalmente ou não, favoreceu a introdução ou a retirada de prescrições aos cristãos, interpretadas de maneira independente e seletiva em relação ao texto bíblico do Segundo Testamento. Pode-se ainda, a partir da significação do que se considera como erro, prestigiar grupos e normas sociais de acordo com a conveniência política de cada sociedade, época ou vertente religiosa. É fato que em cada época momento histórico as prescrições da igreja para os cristãos mudam, acompanhando a realidade sociocultural, apesar de essas mudanças se processarem lentamente.
Comparando-se a literalidade das traduções mais comuns para a língua portuguesa com a desenvolvida nesta análise, temos:
1 – Na Bíblia de Jerusalém: “Qualquer que comete pecado, também comete iniquidade; porque o pecado é iniquidade.” (BÍBLIA, 2002, p. 2128).
2 – Na tradução de João Ferreira de Almeida: “Todo aquele que pratica o pecado também transgride a lei, porque o pecado é a transgressão da lei.” (BÍBLIA, 2006, p. 197).
3 –“Cada qual que não testemunha comete ilegalidade, porque a negação do testemunho deles é ilegalidade”. (tradução nossa).
A partir da leitura comparada dos versículos traduzidos para a língua portuguesa apresentados acima, pode-se concluir que a tradução apresentada por Almeida (BÍBLIA, 2006) leva a uma interpretação mais rígida, ou seja, transmite uma ideia que remete ao cumprimento das prescrições, pelo menos em parte, da Lei Mosaica, judaica. Esta condenava veemente e textualmente a homossexualidade. O autor pode ter sido influenciado por seu ponto de vista tradicionalista ao escolher as palavras para a adaptação de tradução do texto analisado, também não sendo possível a ele dispor de uma preocupação refinada quanto à literalidade da tradução, missão improvável dada a tarefa de traduzir milhares de páginas a partir do latim e do grego.
Já a tradução da Bíblia de Jerusalém (BÍBLIA, 2002), revisada por teólogos judeus, protestantes e católicos, conjuntamente e de uma maneira mais imparcial, permite uma interpretação mais específica sobre o pecado porque considera “αμαρτια”(amartia), a “negação do testemunho”, como sinônimo de iniquidade, que é o tratamento desigual de pessoas ou, em uma única palavra, “injustiça”. O pecado, assim, teria o sentido de prática da injustiça, o que pode ser considerado mais compatível com o pensamento do Segundo Testamento de não impor inúmeras prescrições sobre os cristãos, mas desenvolver uma consciência ética.
Considerando-se a possibilidade de tradução adaptada ora desenvolvida, compreende-se que o apóstolo então pretendia transmitir aos cristãos que a “legalidade” seria simplesmente desenvolver um bom testemunho de si segundo o pensamento de Cristo. A ilegalidade a ser evitada, denotada pelo texto, seria então evitar a negação do testemunho pelo cometimento de injustiças, e por isso não estaria mais relacionada ao seguimento de uma infinidade de normas, como acontecia com a Lei Mosaica, que apresentava seiscentas e treze prescrições a serem cumpridas rigidamente.
Essa interpretação foi desenvolvida a fim de ilustrar o quanto uma única palavra, que pode ser adaptada a diferentes situações, pode ter sérias implicações na significação de todo um discurso, uma vez que, como no exemplo analisado, podem-se mudar as configurações do Poder sobre uma sociedade porque se alteram também os Saberes decorrentes da interpretação de uma única proposição.
O discurso do pecado
se modifica historicamente
O resultado da tradução e da
análise do versículo da carta
Apostólica de João 3,4 vem
ao encontro da visão cristã de desobrigação com relação ao
cumprimento da Lei Judaica, amplamente presente no Segundo Testamento
e definida no concílio dos apóstolos, como descrito em
Atos dos Apóstolos, 15, 5-6: “[...]
Então, alguns dos que tinham sido da seita dos fariseus mas haviam
abraçado a fé, intervieram. Diziam que era preciso circuncidar os
gentios e prescrever-lhes que observasse a Lei de Moisés.
Reuniram-se então os apóstolos e os anciãos para examinarem o
problema. [...].” (BÍBLIA, 2002, p. 1929). Nessa discussão entre
os líderes da emergente igreja, estava em pauta se deveria ser
imposta a Lei Mosaica sobre os gentios convertidos a Cristo, ou seja,
a todo que não era judeu, mas que havia abraçado a fé em Cristo.
Os judeus da seita dos fariseus, a divisão mais rígida e
tradicionalista do Judaísmo quanto à aplicação da lei, defendia
que todos os convertidos a Cristo deveriam ser submetidos à Lei
Mosaica.
Nessa ocasião, o apóstolo
Pedro, líder da igreja, contra-argumentou com os cristãos
tradicionalistas, expondo sua experiência na evangelização dos
gentios, a saber, os não judeus, relatando como eles aderiram à fé
em Cristo e puderam participar da mesma espiritualidade cristã que
os de origem judaica, esclarecendo que não era pelo conhecimento da
Lei que se participava dessa espiritualidade, segundo Atos dos
Apóstolos 15, 7-11:
Tornando-se
acesa a discussão, levantou-se Pedro e disse: “Irmãos, vós
sabeis que desde os primeiros dias, aprouve a Deus, entre vós, que
por minha boca ouvissem os gentios a palavra da Boa Nova, e
abraçassem a fé. Ora, conhecedor dos corações, que é Deus, deu
testemunho em favor deles, concedendo-lhes o Espírito Santo assim
como a nós. Não fez distinção alguma entre nós e eles,
purificando seus corações pela fé. Agora, pois, porque tentais a
Deus, impondo ao pescoço dos discípulos, um julgo que nem nossos
pais nem mesmo nós pudemos suportar? Ao contrário, é pela graça
do Senhor Jesus que nós cremos ser salvos, da mesma forma que eles.
(BÍBLIA, 2002, p. 1929).
Ainda é
necessário considerar o fato de que a discussão entre os apóstolos
era justamente se deveria ser imposta a lei mosaica aos convertidos
não judeus como forma de justificação, uma vez que estes
apresentaram os sinais identificadores de sua conversão sem a
necessidade de estarem
subordinados a essa legislação, como descrito em Atos dos
Apóstolos, 15, 12-18:
Então,
toda a assembleia silenciou. E passaram a ouvir Barnabé e Paulo
narrando quantos sinais e prodígios que Deus operara entre os
gentios por meio deles. Quando cessaram de falar, Tiago tomou a
palavra, dizendo: “Irmãos, escutai-me. Simeão acaba de expor-nos
como Deus se dignou, desde o início, escolher dentre os gentios um
povo dedicado ao seu Nome. Com isto concordam as palavras dos
profetas, segundo o que está escrito. Depois
disso voltarei e reedificarei a tenda arruinada de Davi,
reconstruirei as suas ruínas e a reerguerei. A fim de que o resto
dos homens procurem o Senhor, assim como todas as nações dedicadas
ao meu Nome, diz o Senhor que faz essas coisas conhecidas desde
sempre. Eis
porque, pessoalmente, julgo que não se devam molestar aqueles que,
dentro os gentios, se convertem a Deus. […]. (BÍBLIA, 2002, p.
1929-1930).
Os
discursos do apóstolo Pedro, do apóstolo Barnabé2
e do apóstolo Paulo convenceram o concílio, que acabou por adotar
uma postura de não se impor mais a Lei Mosaica aos cristãos
gentios, que eles chamavam de “discípulos”, tornando-se a partir
daí, a desobrigação quanto à lei, uma prescrição religiosa
universal para o Cristianismo.
Entretanto,
apesar
desses argumentos e em virtude da forte influência da tradição
judaica sobre a igreja que se iniciava, algumas prescrições da Lei
Mosaica caras aos judeus foram mantidas para os cristãos de qualquer
origem, como descrito
em Atos, 15, 20-21: “[…]
Mas se lhes escreva que se abstenham do que está contaminado pelos
ídolos, das uniões ilegítimas, das carnes sufocadas e do sangue.
Com efeito, desde as antigas gerações tem Moisés em cada cidade
seus pregadores, que o leem em nas sinagogas, todos os sábados.”
(BÍBLIA, 2002, p. 1930).
A partir
de então, por definição dos apóstolos e sob sua autoridade
apostólica, a igreja passou a ensinar aos cristãos as normas
fixadas por esse concílio, que, por ser fundante da igreja e de seu
discurso, assume
um caráter universal, isto é, uma referência para todas as igrejas
cristãs descendentes, conforme Atos, 15, 27-29:
[…]
Nós vos enviamos, pois, Judas e Silas, eles também transmitindo, de
viva voz, esta mesma mensagem. De fato, pareceu bem ao Espírito
Santo e a nós não vos impor nenhum outro peso além dessas coisas
necessárias: que vos abstenhais das carnes imoladas aos ídolos, do
sangue, das carnes sufocadas, e das uniões ilegítimas. Fareis bem
preservando-vos destas coisas. Passai bem. (BÍBLIA, 2002, p. 1930).
Pelo texto
bíblico examinado fica claro que, depois desse concílio, o que
passa a importar para os cristãos, além das poucas prescrições
provindas das leis judaicas que ainda permaneceram como obrigações,
é que a religião cristã tem por objetivo levar seus participantes
a desenvolverem uma ética solidária e não mais obrigá-los a
cumprir uma lei que, segundo os próprios apóstolos, não foi
cumprida nem pelos judeus, conforme Atos
dos Apóstolos, 15, 10-11: “[...]
Agora, pois, porque tentais a Deus, impondo ao pescoço dos
discípulos, um julgo que nem nossos pais nem mesmo nós pudemos
suportar? Ao contrário, é pela graça do Senhor Jesus que nós
cremos ser salvos, da mesma forma que eles.” (BÍBLIA, 2002, p.
1929).
Analisando-se,
pois, as 4 (quatro) prescrições que foram mantidas pelos apóstolos
no concílio, descritas em Atos dos Apóstolos, 15, 29, temos: “[...]
que vos abstenhais das carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das
carnes sufocadas, e das uniões ilegítimas [...].” (BÍBLIA, 2002,
p. 1930). As três primeiras ainda podem ser objeto de
questionamentos com base no próprio texto do Segundo Testamento, por
exemplo, se as compararmos com o que diz Jesus, que declara com uma
autoridade considerada maior que a do concílio que todos os
alimentos são puros, independentemente de qualquer condição,
contrapondo o cumprimento da lei ao estabelecimento de uma
consciência ética conforme o que consta no
Evangelho segundo Marcos, 7, 14-16: “E,
chamando de novo para junto de si a multidão disse-lhes: ‘Ouvi
todos, e entendei! Nada há no exterior do homem que, penetrando
nele, o possa tornar impuro; mas o que sai do homem, isso é o que o
torna impuro. Se alguém tem ouvidos, ouça!’”
(BÍBLIA, 2002, p. 1769). Fica
claro nessas passagens a contraposição do cumprimento obrigatório
da Lei Judaica a uma consciência que leva à convivência harmoniosa
e ética entre as pessoas.
Antes de prosseguir, coloca-se
uma problematização como pertinente a essa discussão: se os
cristãos foram dispensados de restrições quanto à alimentação,
inclusive pelo próprio Cristo, como demonstrado anteriormente, por
ser apenas uma questão externa ao homem e que envolve apenas
costumes alimentares, por que a sexualidade não pode ser vista pela
religião como uma questão igualmente de costumes e dispensada
integralmente do cumprimento da lei religiosa?
Por fim, a
última proibição que permaneceu para os cristãos, segundo o
concílio dos Apóstolos, é:
“[...] vos abstenhais das [...] das uniões ilegítimas [...].”
(BÍBLIA, 2002, p. 1930).
É nessa passagem bíblica que
proíbe as “uniões ilegítimas” que residiria o problema central
da interpretação sobre a proibição das uniões homoafetivas no
Segundo Testamento. É importante notar que “ilegítimas”
refere-se àquilo que está fora da lei, mais uma vez, remetendo ao
debate do discurso contido na Lei Mosaica, regulamentação em que
estão os enunciados originais das proibições e os sujeitos
fundantes dos discursos (FOUCAULT, 1996). Uma questão que se coloca
nesse ponto é: em um ambiente de Estado laico, uma união entre duas
pessoas deveria ser justificada pela legitimação ditada pela Lei
Mosaica ou pelo respeito a uma consciência ética pessoal e social,
acompanhada por leis civis que a regulem? A lei judaica está em
vigor? Para quem? Como se justificaria, por exemplo, a proibição da
união entre duas pessoas do mesmo sexo em uma cultura com costumes
diferentes em relação aos cristãos e judeus e na qual não se
conhece a Lei Mosaica? Em algumas culturas indígenas americanas, por
exemplo, a identidade transgênera é normalmente respeitada.
A importância dessa discussão
para os cidadãos em geral e, certamente, também para os cristãos,
repousa sobre o fato de que a partir dela se podem eliminar
preconceitos e discriminações, isto é, iniquidades ou injustiças,
atingindo objetivos propostos pelo próprio Cristianismo.
Questionamentos sobre o que deve
ser considerado erro ou “pecado” pela religião são uma
discussão necessária e indispensável que pode auxiliar a
Desconstrução e o entendimento das bases que sustentam o
preconceito contra a diversidade de expressão da sexualidade e da
identidade de gênero.
Em virtude
das observações apresentadas até aqui sobre o conceito de pecado,
questões
podem ser colocadas a seguidores do Cristianismo que se baseiam nas
escrituras sagradas cristãs e judaicas para sustentar pontos de
vista discriminatórios, como por exemplo: qual é o conceito de
pecado que deve ser seguido? Deve ser priorizada a ética nas
relações humanas ou o simples seguimento de uma infinidade de
normas prescritas pela religião? Qual é a finalidade da Lei
Mosaica? E a da religião cristã? Um conceito provindo da tradição
religiosa que direta ou indiretamente promove discriminações
injustas e destrutivas à sociedade não deveria, pelo menos, passar
por um processo de revisão à luz da ciência?
Historicamente,
a igreja, com base científica, tem revisado muitos conceitos que
hoje são universalmente aceitos por todos os cristãos sem
discussão. Um exemplo é o fato de a igreja reconhecer que a Terra
gira ao redor do sol, algo de compreensão simples e óbvia para os
dias atuais e normalmente aceito, mas que no século XVII foi motivo
de inquisição e censura à ciência de Galileu3
por representar, na época, uma ameaça à hegemonia das ideias
religiosas.
Seria
impossível levar essa discussão sobre o que deve ser considerado
pecado ou não a um ponto conclusivo no tempo disponível para a
presente investigação, mas se considerou importante apresentar
esses primeiros questionamentos como forma de chamar atenção,
especialmente de educadoras e educadores, para a necessidade de
revisão desse e de outros conceitos envolvidos nas regulações
impostas pelo pensamento cristão que circulam mediante os discursos
presentes na cultura da sociedade ocidental e que, que muitas vezes,
são usados para justificar as categorizações, discriminações e
negação de direitos a indivíduos. No final desta análise, as
discriminações sustentadas por conceitos religiosos podem ser
resumidas sob o próprio significado da palavra “iniquidade”,
a
qual
os cristãos originalmente propõem-se a evitar. Nesse caso o “erro”
a ser evitado seria a prática de injustiças.
Notas
1 Jerônimo foi um sacerdote católico romano que no século IV traduziu para o latim todo o conteúdo das escrituras sagradas para os cristãos, que até então estavam disponíveis em diferentes idiomas, em versões que circulavam pelas províncias do Império Romano. A tradução que permitiu unificar o idioma, os conteúdos e universalizar os ensinamentos cristãos recebeu então o nome genérico de “livros”, ou seja, em latim, “bíblia”. A Bíblia Vulgata (comum) tinha por objetivo fornecer uma versão definitiva para o latim, comum em sua época em todo o Império Romano em detrimento das diversas traduções existentes até então. (MACDONALD, 2013).
2 Existem controvérsias sobre Barnabé ter sido considerado oficialmente apóstolo pela igreja primitiva.
3 O Italiano Galileu Galilei foi físico, matemático, astrônomo e filósofo. Afirmou no século XVII que a Terra girava ao redor do sol como resultado de seus experimentos. A afirmação conflitou com a doutrina da Igreja Católica, que em 1616 declarou que tal teoria estava "teologicamente" errada. Por isso Galileu foi condenado à prisão domiciliar e seus livros foram censurados.
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REFERÊNCIAS
BÍBLIA. Língua Portuguesa. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
BÍBLIA. Língua Portuguesa. Bíblia Sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 2006.
BÍBLIA. Língua Grega. Bibliapedia. O Novo Testamento em Grego. Textus Receptus. Bíblia Eletrônica de Pesquisa. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2016.
CAROLLI, André Luís. Desconstrução de discursos discriminatórios sobre a diversidade de expressão da sexualidade e da identidade de gênero expressos entre alunos e alunas do ensino médio. Dissertação de Mestrado em Educação, 199 p., sob orientação da Profa. Dra. Maria José de Jesus Alves Cordeiro - UEMS. Paranaíba, MS: UEMS, 2017.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.
______. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.
______. A Farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005.
DUTRA, Sílvio. Estudos Bíblicos. Web Artigos, 2012. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2016.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4 ed. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
______. A
Ordem do Discurso.
Aula inaugural do College de France, pronunciada em 2 de Dezembro de
1970. 3 ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
______. História da Sexualidade I: A vontade de saber. 13 edição. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.
______. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.
______. A Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
MACDONALD, Lee Martin. A origem da Bíblia. Um guia para os perplexos. São Paulo: Editora Paulus, 2013.
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